O Brasil assiste a uma das mais radicais transformações no processo de obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). A proposta de permitir que instrutores autônomos credenciados ministrem aulas práticas, desvinculadas dos Centros de Formação de Condutores (CFCs) – as autoescolas –, representa um marco que polariza a sociedade: de um lado, a promessa de inclusão social e redução de custos; do outro, a profunda preocupação com a qualidade e a segurança viária.
📉 A Promessa do Barateamento e a Inclusão
O principal argumento do Governo para flexibilizar o processo é a democratização do acesso à CNH. Com o fim da obrigatoriedade das aulas práticas em CFCs (e a possibilidade de reduzir a carga horária mínima), estima-se que o custo total para o cidadão possa cair drasticamente.
O alto preço, que hoje gira em torno de R$ 3.000 a R$ 4.000 em muitas regiões, é apontado como o principal motivo para que milhões de brasileiros dirijam sem habilitação. A figura do “personal de trânsito”, o instrutor autônomo, surge como uma alternativa mais flexível e acessível.
Para o instrutor que já atua no mercado ou para aquele que deseja ingressar na área, a proposta representa uma oportunidade de autonomia profissional e aumento de renda, desde que cumpram os requisitos de formação e credenciamento estabelecidos pela Senatran e pelo Detran local.
🛡️ O Grito de Alerta das Autoescolas e o Risco à Qualidade
Apesar da atratividade econômica, o setor de CFCs e especialistas em segurança de trânsito levantam sérios questionamentos. A Federação Nacional das Autoescolas (Feneauto), por exemplo, alerta para o risco de “precarização do baratear” e para a ameaça a mais de 300 mil empregos no setor.
Os CFCs argumentam que o seu modelo oferece diferenciais de segurança e qualidade que são difíceis de replicar:
- O Dilema do Duplo Comando: O principal ponto de atenção é a segurança veicular. Os carros de autoescola são legalmente obrigados a ter duplo comando de freio e embreagem, permitindo a intervenção imediata do instrutor em situações de risco. A proposta atual não deixa claro se o instrutor autônomo, utilizando veículo próprio ou do aluno, terá a mesma exigência, elevando perigosamente o risco de acidentes durante o aprendizado.
- A Carga Horária e a Formação: Com a retirada da obrigatoriedade da carga horária mínima (atualmente 20 horas/aula), existe o temor de que os candidatos optem pelo menor número de aulas possível apenas para cumprir a burocracia, chegando aos exames práticos com formação insuficiente, comprometendo a segurança de todos nas vias.
- Estrutura e Fiscalização: O CFC oferece uma estrutura completa, com seguro, salas de aula, e um processo de fiscalização mais rígido. A fiscalização de milhares de instrutores autônomos dispersos, por sua vez, exige um sistema robusto de validação eletrônica de aulas (geolocalização, biometria), que precisa ser à prova de fraudes para manter a credibilidade do processo.
⚖️ O Ponto de Equilíbrio: Regras Claras e Qualidade
O debate não deve ser simplificado apenas para “barato versus caro”. O cerne da questão reside em como o Estado pode equilibrar a liberdade econômica e a inclusão social sem abrir mão da responsabilidade na formação do condutor.
Para que a figura do instrutor autônomo seja um avanço e não um retrocesso na segurança viária, é fundamental que a regulamentação final do Contran seja rigorosa, exigindo:
- Formação e Credenciamento: Cursos de capacitação de alto nível e um credenciamento rigoroso junto ao Detran.
- Segurança Veicular: Esclarecimento definitivo sobre a obrigatoriedade de dispositivos de segurança, como o duplo comando, nos veículos usados para instrução.
- Transparência e Fiscalização: Um sistema digital robusto e eficiente para registro e validação das aulas, garantindo que o aprendizado seja real e rastreável.
A CNH é mais do que um documento; é uma licença para operar um veículo que, mal conduzido, pode ceifar vidas. O futuro do trânsito brasileiro depende de uma solução que consiga, de fato, baratear o acesso sem precarizar a vida. Os CFCs, neste novo cenário, terão o desafio de inovar e destacar a qualidade do serviço, enquanto o Governo assume o enorme encargo de fiscalizar a segurança em um mercado agora profundamente descentralizado.
